quinta-feira, 13 de outubro de 2005

Os filhos de Francisco Camargo e os “filhos” de Chico Buarque

por: Sérgio Domingues


Breno Silveira fez “Os dois filhos de Francisco” para mostrar o caminho de Zezé Di Camargo e Luciano até o sucesso. A dupla sertaneja canta para as vítimas de uma desigualdade social que só aumentou nos últimos 40 anos. Um público cada vez mais distante da realidade daqueles que admiram a maravilhosa obra de um Chico Buarque, por exemplo.

Batizar um filme sobre Zezé Di Camargo e Luciano de “Os dois filhos de Francisco” parece uma forma de diminuir o choque de seu tema para um público que torce o nariz para a música sertaneja. Pode ser. Afinal, para encher as salas de cinema, é preciso pensar em tudo. Mas, a obra de Silveira faz a devida homenagem ao velho Francisco, cuja determinação parece ter sido fundamental para o sucesso de seus filhos. Ao mesmo tempo, colocar no centro da cena um trabalhador pobre, inteligente e determinado acaba servindo como um retrato de boa parte do povo brasileiro.

A primeira cena do filme mostra Francisco (Ângelo Antônio) ajustando uma antena no telhado de sua casa de barro, na zona rural de Goiás. Estamos em 1962, e a antena não é para uma TV. É para um rádio. Quando consegue ouvir música no aparelho, esta o hipnotiza. Quase não ouve quando sua mulher, Helena (Dira Paes), avisa da gravidez do primeiro filho. Nascido aquele que viria ser Zezé Di Camargo, Francisco diz que quer mais um filho para formar uma dupla. No entanto, virão outros seis.

Francisco trabalha duro arando a terra. Mas, não quer o mesmo para seus filhos. Quer que eles “subam na vida”. E qual seria o caminho para isso num país em que só resta aos camponeses “ficar arando a terra dos outros?” É Francisco quem pergunta e ele mesmo responde. É o sucesso nas rádios.

Depois de fazer um grande sacrifício para comprar uma sanfona e uma viola, Francisco começa a ensaiar os dois filhos mais velhos. Aos trancos e barrancos, sem professores fixos, os garotos se viram para aprender. Francisco consegue uma chance numa rádio local. Compôs até uma música para isso. Antes de se apresentarem, o diretor da rádio quer ouvir a música. Eram tempos da ditadura militar e a música encerra assim: “Viva as forças armadas e a sua tirania”. O diretor da rádio expulsa os três do estúdio, com medo de repressão. Francisco não fez de propósito. Só considerava bonita a palavra “tirania”.

As seguidas tentativas frustradas de Francisco complicam sua vida financeira. O sogro praticamente o expulsa das terras que arava. Numa atitude típica de milhões de trabalhadores rurais, Francisco e sua família vão para a cidade. No caso, para a capital, Goiânia.

Mirosmar e Welson tornam-se Zezé e Luciano

Francisco logo arranja trabalho, mas o salário de operário da construção civil não chega nem para comprar comida. É aí que a dupla de meninos resolve cantar na rodoviária para ganhar alguns trocados. Na rodoviária, Francisco conhece Miranda (José Dumont), que se diz empresário. Promete sair com os meninos pela região, levantar muito dinheiro e torná-los famosos. O pai concorda. A temporada que deveria ser de algumas semanas transforma-se em meses.

O nome verdadeiro de Zezé é Mirosmar (Dablio Moreira). Seu parceiro e irmão chama-se Emival (Marcos Henrique). Talvez, isso explique porque Miranda resolveu batizar a dupla de Camargo e Camarguinho. Eles passam a cantar em churrascarias, em comícios, fazem sucesso em cidades e vilas à beira da estrada. Tudo ia bem, até que veio a tragédia. O carro em que viajavam se envolve num acidente e Emival morre. Mirosmar entra em depressão. Larga a sanfona, que tocava, acompanhando a viola do irmão.

Algum tempo depois, o garoto supera a depressão e volta a tocar. O filme dá um salto no tempo e o ator Márcio Kieling passa a interpretar um Zezé já saindo da adolescência. Após vencer um concurso musical, ele resolve apostar alto. Parte para São Paulo. Chega a gravar discos, mas somente suas composições fazem sucesso, nas vozes de artistas como Leandro e Leonardo e Chitãozinho e Xororó.

A chance aparece com a chegada a São Paulo de Welson (Thiago Mendonça), o irmão caçula. Os dois formam nova dupla. Mirosmar continuou sendo Zezé Di Camargo, mas Welson virou Luciano. Gravam fitas e saem em busca de gravadoras. Finalmente, convencem uma delas. A música principal do disco chama-se “É o amor”.

No entanto, o sucesso não vem até que Francisco entra em cena novamente. Em Goiânia, leva uma fita de “É o amor” para uma rádio popular. Depois, distribui fichas telefônicas para seus colegas na obra. Pede que todos liguem para a rádio é peçam a música. Segundo a versão do filme, este recurso leva a nova dupla definitivamente para as paradas de sucesso. Francisco venceu. Seus filhos tornam-se estrelas da música brasileira.

Odair José e Waldick Soriano censurados

Como se vê, o filme conta a história de algumas pessoas, mas também é um retrato de uma parte muito importante da história popular do País nos últimos 40 anos.

No início do filme, a voz de Zezé diz que seu pai era considerado louco. Na verdade, Francisco enxergou o poder dos meios de comunicação para o grande público. Afinal vivemos num País sem reforma agrária, com crescimento econômico menor que o aumento da população e com escola, saúde, previdência cada vez mais raras e menos públicas. Desse jeito, os caminhos normais de ascensão social tornam-se verdadeiros becos sem saída. E Francisco acertou ao enxergar na mídia um atalho para “subir na vida”, mesmo que só para alguns.

Outro episódio interessante é o da recusa da música que elogiava a ditadura e “sua tirania”. Ele sugere um outro lado da história da censura no País. Trata-se da censura aos cantores populares. Recentemente, Paulo César de Araújo alertou para esse fenômeno em seu livro "Eu não sou cachorro, não" (Editora Record). Nele, o autor lembra que cantores como Odair José e Waldick Soriano tiveram algumas de suas músicas censuradas. Odair, por exemplo, teve o lançamento de sua conservadora música “Pare de tomar a pílula” dificultado pelas autoridades. A canção contrariava a política da ditadura de impor controle da natalidade entre os mais pobres. Medida típica de quem entende que a culpa da pobreza é dos próprios pobres, que não param de se multiplicar.

Ao mesmo tempo, um dos filhos de Francisco é atacado pela poliomielite (paralisia infantil). O fato é que, ao contrário do que previa a propaganda oficial da ditadura militar, a mortalidade infantil aumentou e diversas epidemias surgiram nas principais cidades. Um delas foi a epidemia de meningite, em 1974, que teve notícias sobre sua existência censuradas pela ditadura.

O canto do galo na canção sertaneja urbana

A morte de Emival no acidente de automóvel mostra como as estradas se multiplicaram sob a ditadura. No entanto, tornaram-se também a causa de muitos acidentes, mutilações e mortes. Resultado de uma opção pelo transporte através do asfalto e do abandono da rede de estradas de ferro. Opção do agrado das empreiteiras, dos fabricantes de automóveis e caminhões e da indústria do petróleo. Sem falar no prejuízo ecológico.

Por outro lado, o sucesso de Zezé Di Camargo e Luciano aconteceu num momento específico da história do País. Foi entre os anos 1980 e 1990, quando o acesso aparelhos eletrônicos ficou mais fácil para as camadas mais pobres da população. Com crédito facilitado por lojas como as Casas Bahia, os pequenos, baratos e barulhentos aparelhos de som chegaram às casas mais humildes. Os grandes discos pretos de vinil deram lugar aos CDs, que são pequenos, práticos e fáceis de copiar. E o mesmo vale para a TV. O filme de Breno mostra como Francisco parou de ouvir rádio no campo para assistir à TV na cidade. Os shows de artistas populares se multiplicaram para atrair a enorme audiência dos mais pobres. Pobres que se tornaram cada vez mais pobres desde o nascimento de Zezé, em 1962. E que se consolam vendo e ouvindo ídolos que são tão parecidos com eles mesmos.

É por isso que o mais importante no filme é a luz que joga sobre uma parte importante da cultura popular brasileira. Popular, mesmo. As letras de Zezé e as músicas que interpreta com seu irmão atingem um enorme público. São os “retirantes”, que vivem amontoados nas periferias, ou nos cortiços e pensões das grandes cidades. Há uma cena em que Francisco observa um galo cantando. Se convence de que para ter boa voz seria precisa engolir ovos crus. Submete os pobres meninos ao estranho tratamento, mas não deve ser por isso que vieram a ser o que são. Na verdade, a cena parece simbolizar o canto típico da música sertaneja urbana. Em geral, são canções com refrões em tom alto, agudo. A voz parece sair do fundo da alma. Como a lembrar os galos da roça e seu canto enérgico. Como se fossem a manifestação de uma saudade dolorida da vida no campo, do qual fugiram para não morrer de fome ou das balas de jagunços.

Ao mesmo tempo, as músicas sobre amor e desilusão se adequam à vida solitária de quem vive entre os luxos da grande cidade sem poder desfrutá-lo, a não ser pelo olhar. Na solidão da pensão ou nas distantes periferias, uma pessoa amada por perto serve como consolo sagrado e definitivo. O agudo refrão “É o Amoooor!” expressaria perfeitamente esse estado de alma.

Zezé Di Camargo e Luciano, e outros artistas como eles, parecem dar voz a esses sentimentos. Sua música diz mais da história popular dos últimos 40 anos dos Brasil do que as maravilhosas obras da “MPB” ouvida pela classe média. Num Brasil cada vez mais injusto, os filhos de Francisco Camargo são cada vez mais numerosos e estão mais distantes dos "filhos" de Chico Buarque.

Setembro de 2005

Sobre o autor:
Sociólogo, membro do Núcleo Piratininga de Comunicação e do Núcleo de Estudos do Capital (PT-SP). www.midiavigiada.kit.net

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